Psicanálise, Foucault e a Questão da Cientificidade
Psicanálise, Foucault e a Questão da Cientificidade
O vídeo "Psicanálise é ciência? Críticas à psicanálise | Christian Dunker | Falando nIsso 128" revisita o debate sobre a cientificidade da psicanálise, abordando críticas epistemológicas históricas e contemporâneas. Do ponto de vista de Foucault, a relevância do vídeo não estaria em resolver a questão da "cientificidade", mas em iluminar os dispositivos de saber-poder em operação na própria discussão.
Christian Dunker, ao detalhar a história da recepção da psicanálise, mostra como a definição de "ciência" (e, por extensão, de "não-ciência" ou "pseudociência") é uma construção histórica e cultural, e não uma verdade universal. Ele menciona:
- O caso Mesmer (1784) [00:57]: A investigação da Academia Francesa de Ciências sobre o magnetismo animal demonstra como os critérios para o que conta como "cura" ou "saber válido" são estabelecidos por instâncias de poder (a academia científica, o rei). A "cura pela palavra" já era um fenômeno, mas sua explicação teórica era descartada como "não científica", evidenciando o poder de demarcação do saber.
- O debate com a psiquiatria e a psicologia experimental (1920s) [04:02]: A luta da psiquiatria para se definir como ciência biológica, buscando marcadores anátomo-patológicos, e a emergência da psicologia experimental com Wundt e Titchener, mostram a consolidação de certas epistemes (configurações históricas do saber) que privilegiam métodos específicos. A psicanálise, ao não se encaixar nesses moldes, é imediatamente colocada sob suspeita.
- As críticas de pensadores como Politzer e Bachelard [05:14]: Dunker destaca como a crítica de Politzer, de extração marxista, questiona "para que serve e para quem serve esse saber", uma pergunta que ressoa diretamente com a genealogia foucaultiana sobre os interesses e os regimes de verdade. Bachelard, por sua vez, propõe a "psicanálise das ciências" [08:23], invertendo a lógica e sugerindo que a própria ciência tem um "inconsciente", ou seja, seus próprios recalques e prejuízos históricos, o que aponta para a contingência do saber científico.
- A crítica de Popper e Wittgenstein [09:25]: Dunker analisa as críticas de Karl Popper e Ludwig Wittgenstein à psicanálise, que se centram na falta de falsificabilidade e no caráter "redescritivo" em vez de "explicativo" da psicanálise. A resposta de Dunker [15:34] ao mostrar a descontextualização de Popper sobre o método psicanalítico (que não se baseia na observação direta de um comportamento, mas nas associações livres do paciente) é importante para Foucault. Isso revela que a crítica não é sobre a "verdade" da psicanálise, mas sobre a aplicação de regras de um determinado discurso científico que não são adequadas a ela. A tentativa de encaixar a psicanálise em um modelo de ciência que lhe é estranho é, para Foucault, um ato de poder que busca normalizar e categorizar os saberes.
Assim, Foucault veria o vídeo como uma evidência das lutas discursivas e das operações de poder que definem o que é considerado "saber legítimo" em um dado momento histórico. A "cientificidade" não é um dado, mas um efeito de um conjunto de práticas e relações de força.
Análise de Fontes
A avaliação do vídeo foi realizada a partir da escuta atenta de seu conteúdo e da interpretação dos argumentos apresentados por Christian Dunker, confrontando-os com os conceitos chave da filosofia de Michel Foucault. As fontes primárias para esta análise são:
- O vídeo em questão: "Psicanálise é ciência? Críticas à psicanálise | Christian Dunker | Falando nIsso 128", do canal Christian Dunker no YouTube. A credibilidade da fonte reside no fato de Christian Dunker ser um psicanalista e professor universitário de renome na área, o que lhe confere autoridade para discutir o tema com profundidade e rigor acadêmico.
- A filosofia de Michel Foucault: O entendimento dos conceitos de "saber-poder", "dispositivo", "episteme" e "genealogia" é fundamental para aplicar sua perspectiva à análise. As obras de Foucault, como As Palavras e as Coisas, Vigiar e Punir e A História da Sexualidade, são as bases teóricas para a interpretação.
O vídeo, ao apresentar uma historicização das críticas à psicanálise e ao mostrar a complexidade dos critérios de cientificidade, serve como um excelente material para ilustrar a tese foucaultiana de que a "ciência" é um regime de verdade historicamente construído. Dunker, embora não explicitamente foucaultiano no vídeo, demonstra na prática como o debate sobre a cientificidade da psicanálise é atravessado por critérios que são eles mesmos produtos de certas configurações de saber e poder.
Conclusão Crítica
A partir da perspectiva foucaultiana, o vídeo é altamente instrutivo. Ele não apenas fornece um panorama histórico das críticas à psicanálise, mas também, implicitamente, revela como a própria pergunta sobre a "cientificidade" é um artefato histórico e uma ferramenta de regulação do saber. Dunker demonstra que as críticas à psicanálise muitas vezes partem de uma aplicação inadequada de métodos e critérios de outras ciências, o que, para Foucault, seria um exemplo de como o poder de demarcação do que é "científico" serve para excluir ou marginalizar certos discursos.
A psicanálise, nesse sentido, é menos uma "ciência" ou "pseudociência" e mais um dispositivo que produz sujeitos, verdades e formas de experimentar o eu, dentro de um regime específico de saber-poder. O valor do vídeo, sob essa ótica, é o de expor a contingência e as relações de força que permeiam a validade de qualquer conhecimento, convidando o espectador a questionar as premissas por trás das próprias questões sobre a cientificidade.
Referências
- DUNKER, Christian. Psicanálise é ciência? Críticas à psicanálise | Christian Dunker | Falando nIsso 128. 2017. Vídeo (21 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DX_3LzEpjHM. Acesso em: 19 set. 2025.
- FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
- FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
- FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
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