A República
Confira o capítulo de introdução de "A República" de Renato Janine Ribeiro
Fonte: Folha online
"Dois Quadros Ressuscitam O Ideal Republicano"
PAI E FILHOS
No Salão de 1789, em Paris, o pintor Jacques Louis David (1748-1825) expõe seu quadro Os Litores Levam ao Cônsul Brutus os Corpos de Seus Filhos, que hoje está no Museu do Louvre. Todo espectador culto entende de imediato o sentido da obra. Refere-se a um episódio da Roma antiga, depois de expulso o último rei e proclamada a república. Brutus era um dos dois cônsules eleitos anualmente que exerciam, em conjunto, o poder executivo. Seus filhos, porém, conspiraram para restaurar a dinastia dos Tarqüínios --uma dinastia etrusca, portanto de origem externa à cidade-- e foram presos.
O próprio pai os condena à morte. Na sua função pública, não poderia agir de outro modo. No quadro, vemos ao fundo os cadáveres, com as mulheres soltando todo o desespero, toda a dor pela morte dos rapazes. No primeiro plano, o cônsul, em silêncio, meditando --e, na sua forma discreta, máscula, condensada, sentindo imensa dor.
O quadro diz muito sobre a república, e isso meses antes da Revolução Francesa e alguns anos antes que a França adotasse essa forma de governo. Muitos comentam a influência que terá tido a jovem república dos Estados Unidos da América sobre a francesa: afinal, a independência norte-americana contou com apoio financeiro e militar da França. E Thomas Jefferson, que redigiu a Declaração de Independência das 13 Colônias, foi embaixador de seu país em Paris, de 1785 ao início da Revolução.
Mas pensemos um pouco. Os homens da Revolução Francesa eram cultos, estudados, assim como, aliás, os da Americana. Conheciam a tradição clássica. O que levariam mais em conta, a experiência recente e ainda pouco testada de um punhado de colonos numa terra distante, ou séculos de sucesso num dos maiores centros da civilização européia? Roma e o neoclássico estavam em voga, naquele fim do século 18.
O que nos diz o quadro de David? Antes de mais nada, que o bem público se sobrepõe ao privado. Essa frase, que geralmente tomamos por mero lugar-comum, tem nos valores da República um claro significado: devemos sacrificar as vantagens e até os afetos pessoais ao bem comum. O pai executa o filho, como o filho eventualmente mataria o pai, em nome da Cidade. O custo dessa ação não é negado e nem mesmo ocultado. Ninguém ignora a dor de Brutus --seria tão fácil apresentá-lo como um político desumano, que ao poder sacrifica o amor!--, mas ele não podia agir decentemente de outro modo.
A República tem custo alto, mas é justo pagá-lo. Para sairmos, porém, da facilidade com que essas palavras são ditas, vamos a um episódio mais recente, também gerador de vasta iconografia, que enche de horror quem o conhece. É o caso do pequeno Pavel Morozov, um adolescente russo que denunciou o próprio pai ao poder soviético, no começo dos anos 30, por esconder cereais. O pai foi condenado a uma longa pena num campo de concentração, onde provavelmente morreu; já o garoto acabou assassinado na vila em que vivia. Pois Pavel foi instituído como o grande herói do Konsomol, a organização da juventude comunista, e estátuas em sua honra se espalharam por toda a União Soviética.1
Há várias razões para que a história nos choque. Pavel traiu o pai. Denunciou-o não porque conspirasse contra o país, mas só porque escondia comida. Pior que isso, foi convertido em exemplo, em herói. Dizia-se aos meninos e meninas: sejam como ele. Uma cultura exortou a denunciar os pais.
Mas essa história execrável não é diferente da romana que vimos acima. Brutus foi herói, sobretudo por ter mandado executar os filhos. É verdade que eles haviam cometido crime pior que o pai de Pavel, mas Pavel não foi o juiz que mandou matar o pai - embora tenha pedido, ao tribunal, que o punisse. O cerne da questão é o mesmo: o bem comum passa à frente dos afetos.
Tanto Roma quanto Moscou fizeram deles figuras exemplares. Provavelmente, o que nos faz detestar a história soviética é que a república hoje passa melhor que o comunismo: atualmente, ela é o regime aceito pela maior parte da humanidade.
PÚBLICO VERSUS PRIVADO
Sim, a república é hoje o regime aceito pela maior parte do mundo. Mas da boca para fora. No Brasil, onde desde 1889 o regime se chama república, só houve eleições minimamente decentes para a presidência em 1945, 1955 e 1960 --e eleições livres de 1989 para cá, mas ainda com certa manipulação dos meios de comunicação. De nossos cento e poucos anos nominalmente republicanos, quantos corresponderam a um regime com as liberdades públicas asseguradas?
O que este livro pretende não é reiterar a velha diferença entre monarquia e república, ficando na forma e no nome da república. Quem tem dúvida de que as monarquias do norte da Europa têm governos mais respeitosos de seus cidadãos e do bem comum do que a maior parte das repúblicas americanas, africanas e asiáticas? Pouco após o golpe de 15 de novembro, Eduardo Prado denunciou a ditadura militar que se instalara no Brasil e defendeu a monarquia deposta: muitos achavam o imperador Pedro II mais cioso do bem comum do que os marechais e os oligarcas paulistas e mineiros que se sucederam a ele.
Mas continuemos no Louvre. David já pintara, em 1784-5, O Juramento dos Horácios. Mais uma vez, a referência romana, que naquele tempo qualquer espectador --por ser culto-- decifraria com facilidade. Muitos quadros evocavam uma história conhecida do público. Reza a lenda que Roma e Alba combinaram decidir uma guerra num combate de três jovens romanos, os irmãos Horácios, com três albanos, os irmãos Curiácios. Tão logo começa a luta, dois Curiácios matam dois Horácios. A questão parece resolvida; os Curiácios atacam o romano sobrevivente. Ele sai correndo. Mas não é covardia e sim esperteza que o move: seus perseguidores correm em velocidade desigual, e o último Horácio pode a cada etapa parar, enfrentar um inimigo só, matá-lo e retomar a corrida. Assim, ele vence os inimigos de Roma.
A astúcia é essencial para o defensor da república --será essa a moral da história? Não. Ou até é, mas a história prossegue. De volta a Roma, o vencedor encontra a irmã, Camila. Esta, sabendo o que se passou, chora. Era noiva de um dos Curiácios. O irmão, vendo-a chorar um inimigo de Roma, mata-a.
Se fosse esta uma ópera do século 19, certamente o irmão não saberia do noivado e a mataria ao tomar conhecimento dele. Mas nossa história romana não é melodrama: é tragédia. O Horácio restante sabia do noivado, e isso torna a história mais assustadora. Não só ele matou a irmã, por ter traído o amor à pátria, mas antes disso não hesitaram ele, os irmãos e os inimigos em lutar até a morte entre amigos, a um passo de se tornar parentes. A república prevalece sobre qualquer sentimento, qualquer elo privado.
A MULHER DESDENHADA
O lugar da mulher, na república, não é admirável. As mulheres da gen Brutus choram à vontade, mas porque valem menos que os homens. Têm maior liberdade de exprimir os sentimentos, mas isso porque contam com menos obrigações - de defender a pátria, o bem comum, a coisa pública. No episódio dos Horácios, à moça morta não se reconhece nem o direito de chorar o amado. A República Romana, que os revolucionários franceses evocam, porque a seu tempo é a grande história de sucesso, é viril. É máscula. É de homens.
Fonte: Folha online
"Dois Quadros Ressuscitam O Ideal Republicano"
PAI E FILHOS
No Salão de 1789, em Paris, o pintor Jacques Louis David (1748-1825) expõe seu quadro Os Litores Levam ao Cônsul Brutus os Corpos de Seus Filhos, que hoje está no Museu do Louvre. Todo espectador culto entende de imediato o sentido da obra. Refere-se a um episódio da Roma antiga, depois de expulso o último rei e proclamada a república. Brutus era um dos dois cônsules eleitos anualmente que exerciam, em conjunto, o poder executivo. Seus filhos, porém, conspiraram para restaurar a dinastia dos Tarqüínios --uma dinastia etrusca, portanto de origem externa à cidade-- e foram presos.
O próprio pai os condena à morte. Na sua função pública, não poderia agir de outro modo. No quadro, vemos ao fundo os cadáveres, com as mulheres soltando todo o desespero, toda a dor pela morte dos rapazes. No primeiro plano, o cônsul, em silêncio, meditando --e, na sua forma discreta, máscula, condensada, sentindo imensa dor.
O quadro diz muito sobre a república, e isso meses antes da Revolução Francesa e alguns anos antes que a França adotasse essa forma de governo. Muitos comentam a influência que terá tido a jovem república dos Estados Unidos da América sobre a francesa: afinal, a independência norte-americana contou com apoio financeiro e militar da França. E Thomas Jefferson, que redigiu a Declaração de Independência das 13 Colônias, foi embaixador de seu país em Paris, de 1785 ao início da Revolução.
Mas pensemos um pouco. Os homens da Revolução Francesa eram cultos, estudados, assim como, aliás, os da Americana. Conheciam a tradição clássica. O que levariam mais em conta, a experiência recente e ainda pouco testada de um punhado de colonos numa terra distante, ou séculos de sucesso num dos maiores centros da civilização européia? Roma e o neoclássico estavam em voga, naquele fim do século 18.
O que nos diz o quadro de David? Antes de mais nada, que o bem público se sobrepõe ao privado. Essa frase, que geralmente tomamos por mero lugar-comum, tem nos valores da República um claro significado: devemos sacrificar as vantagens e até os afetos pessoais ao bem comum. O pai executa o filho, como o filho eventualmente mataria o pai, em nome da Cidade. O custo dessa ação não é negado e nem mesmo ocultado. Ninguém ignora a dor de Brutus --seria tão fácil apresentá-lo como um político desumano, que ao poder sacrifica o amor!--, mas ele não podia agir decentemente de outro modo.
A República tem custo alto, mas é justo pagá-lo. Para sairmos, porém, da facilidade com que essas palavras são ditas, vamos a um episódio mais recente, também gerador de vasta iconografia, que enche de horror quem o conhece. É o caso do pequeno Pavel Morozov, um adolescente russo que denunciou o próprio pai ao poder soviético, no começo dos anos 30, por esconder cereais. O pai foi condenado a uma longa pena num campo de concentração, onde provavelmente morreu; já o garoto acabou assassinado na vila em que vivia. Pois Pavel foi instituído como o grande herói do Konsomol, a organização da juventude comunista, e estátuas em sua honra se espalharam por toda a União Soviética.1
Há várias razões para que a história nos choque. Pavel traiu o pai. Denunciou-o não porque conspirasse contra o país, mas só porque escondia comida. Pior que isso, foi convertido em exemplo, em herói. Dizia-se aos meninos e meninas: sejam como ele. Uma cultura exortou a denunciar os pais.
Mas essa história execrável não é diferente da romana que vimos acima. Brutus foi herói, sobretudo por ter mandado executar os filhos. É verdade que eles haviam cometido crime pior que o pai de Pavel, mas Pavel não foi o juiz que mandou matar o pai - embora tenha pedido, ao tribunal, que o punisse. O cerne da questão é o mesmo: o bem comum passa à frente dos afetos.
Tanto Roma quanto Moscou fizeram deles figuras exemplares. Provavelmente, o que nos faz detestar a história soviética é que a república hoje passa melhor que o comunismo: atualmente, ela é o regime aceito pela maior parte da humanidade.
PÚBLICO VERSUS PRIVADO
Sim, a república é hoje o regime aceito pela maior parte do mundo. Mas da boca para fora. No Brasil, onde desde 1889 o regime se chama república, só houve eleições minimamente decentes para a presidência em 1945, 1955 e 1960 --e eleições livres de 1989 para cá, mas ainda com certa manipulação dos meios de comunicação. De nossos cento e poucos anos nominalmente republicanos, quantos corresponderam a um regime com as liberdades públicas asseguradas?
O que este livro pretende não é reiterar a velha diferença entre monarquia e república, ficando na forma e no nome da república. Quem tem dúvida de que as monarquias do norte da Europa têm governos mais respeitosos de seus cidadãos e do bem comum do que a maior parte das repúblicas americanas, africanas e asiáticas? Pouco após o golpe de 15 de novembro, Eduardo Prado denunciou a ditadura militar que se instalara no Brasil e defendeu a monarquia deposta: muitos achavam o imperador Pedro II mais cioso do bem comum do que os marechais e os oligarcas paulistas e mineiros que se sucederam a ele.
Mas continuemos no Louvre. David já pintara, em 1784-5, O Juramento dos Horácios. Mais uma vez, a referência romana, que naquele tempo qualquer espectador --por ser culto-- decifraria com facilidade. Muitos quadros evocavam uma história conhecida do público. Reza a lenda que Roma e Alba combinaram decidir uma guerra num combate de três jovens romanos, os irmãos Horácios, com três albanos, os irmãos Curiácios. Tão logo começa a luta, dois Curiácios matam dois Horácios. A questão parece resolvida; os Curiácios atacam o romano sobrevivente. Ele sai correndo. Mas não é covardia e sim esperteza que o move: seus perseguidores correm em velocidade desigual, e o último Horácio pode a cada etapa parar, enfrentar um inimigo só, matá-lo e retomar a corrida. Assim, ele vence os inimigos de Roma.
A astúcia é essencial para o defensor da república --será essa a moral da história? Não. Ou até é, mas a história prossegue. De volta a Roma, o vencedor encontra a irmã, Camila. Esta, sabendo o que se passou, chora. Era noiva de um dos Curiácios. O irmão, vendo-a chorar um inimigo de Roma, mata-a.
Se fosse esta uma ópera do século 19, certamente o irmão não saberia do noivado e a mataria ao tomar conhecimento dele. Mas nossa história romana não é melodrama: é tragédia. O Horácio restante sabia do noivado, e isso torna a história mais assustadora. Não só ele matou a irmã, por ter traído o amor à pátria, mas antes disso não hesitaram ele, os irmãos e os inimigos em lutar até a morte entre amigos, a um passo de se tornar parentes. A república prevalece sobre qualquer sentimento, qualquer elo privado.
A MULHER DESDENHADA
O lugar da mulher, na república, não é admirável. As mulheres da gen Brutus choram à vontade, mas porque valem menos que os homens. Têm maior liberdade de exprimir os sentimentos, mas isso porque contam com menos obrigações - de defender a pátria, o bem comum, a coisa pública. No episódio dos Horácios, à moça morta não se reconhece nem o direito de chorar o amado. A República Romana, que os revolucionários franceses evocam, porque a seu tempo é a grande história de sucesso, é viril. É máscula. É de homens.
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