Infância e História: sobre a destruição da experiência



Giorgio Agamben. Infancy and History: On the Destruction of Experience (Radical Thinkers)

O que a imprensa diz sobre: INFÂNCIA E HISTÓRIA
O Globo / Data: 24/9/2005
A cisão como experiência

Carlos Eduardo Schmidt Capela

A publicação no Brasil de Infância e História poderia ser interpretada como mais um sintoma de nosso isolamento, ou de nosso insistente atraso intelectual. Nos ensaios ali reunidos, publicados em 1978 na Itália, o leitor encontra alguns dos temas, preocupações e motivos que norteavam as reflexões de Giorgio Agamben acerca da modernidade ocidental. A publicação tardia impossibilitou acompanhar movimentos cruciais da prática criativa do autor, de algumas de suas opções teóricas e metodológicas, bem como daquelas relativas à montagem e à escritura de seus textos instigantes. Pior - impediu que fossem entre nós consideradas discussões e proposições consistentes feitas a partir da conhecida constatação de Walter Benjamin de que a modernidade implicou uma expropriação da experiência humana. Isso na plena efervescência dos anos 1970, quando ocorre uma salutar atenção pelo pensador alemão.

Recusa da História como um processo linear e vazio.

Mais interessante, e condizente com o teor das propostas ali formuladas, seria considerar esse lançamento tardio segundo uma lógica menos negativa. Perceber o fato como 'dýnamis', como 'potência' ou 'saber' talvez nos ajude a manter uma relação mais madura com a 'privação' aí implicada. Esta afinal seria, segundo o filósofo, constitutiva da experiência humana, algo inerente à linguagem que, 'cindida em língua e discurso, contém estruturalmente esta relação, não é nada além desta relação'. Graças ao atraso, Infância e História poderia então, com olhos livres, ser visto como portando em si, em clave alegórica, a experiência fundamental nele descrita - a da infância, 'lugar da verdade' no qual o homem, 'não (sendo) sempre falante, cinde (a) língua una (da natureza) e apresenta-se como aquele que, para falar, deve constituir-se como sujeito da linguagem, deve dizer eu'. É assim introduzida uma descontinuidade entre língua, não histórica, e discurso, condição sem a qual teria sido impossível a construção da História. Daí o destaque conferido a essa cisão, que alimenta uma argumentação atenta a cisões análogas, dela desdobradas.Na interpretação aqui sugerida, a publicação seria pensada segundo a lógica da fratura, o lançamento diferido figurando como signo de processos de cisão insistentemente identificados. Isso implica, ainda, recusar uma concepção de tempo, e de História, como um processo linear, homogêneo e vazio, contra a qual Agamben se bate. Perceber o livro como 'uma experiência da História', como 'aquilo que já está sempre lá sem jamais estar sob os olhos como tal', pode ser, então, uma maneira de experimentar o conceito de tempo nele proposto, como cairós , quando 'a iniciativa do homem colhe a oportunidade favorável e decide no átimo a própria liberdade'.

Infância funciona como contraponto à ciência

A História, no caso, dá lugar a uma 'ultra-História' que, como o mito, desafia a diacronia e não cessa de acontecer, garantindo a compreensão e a coerência históricas. Tal concepção é correlata de um entendimento da origem como evento que traz uma abertura espacio-temporal. O modelo concebido a partir das ciências naturais, em que a origem é fixada em uma cronologia e torna-se motor de causalidades, é então abandonado, caso o 'objeto' em exame não pressuponha o humano 'atrás de si' (como a linguagem). Por que, sendo historicizante, a origem não pode ser historicizada - ela inaugura a possibilidade mesmo da História.Infância e experiência constituem o lugar paradoxal que faculta a crítica da expropriação da experiência. O propósito é preparar o espaço lógico em que o germe da experiência futura, identificado na recusa da Humanidade em experimentar até o maravilhoso, possa alcançar sua maturação. A infância, experiência irredutível, funciona aí como contraponto à ciência, que, ao se edificar como 'via certa', 'método' ou caminho, contribuiu decisivamente para afastar o reconhecimento de que a aporia, a ausência de via, é a experiência humana fundamental. Para demonstrar tal tese, no ensaio mais denso e que dá título ao livro, Agamben realiza um excurso em que recupera momentos decisivos daquela dinâmica de expropriação, mesclando argumentação com glosas em que temas são retomados e desenvolvidos, isso com base em criações, testemunhos ou intuições de escritores e pensadores diversos. A montagem, aporia em processo.Naturalizada, a experiência perde autoridade diante do empirismo montante, resultado do esquecimento de que, no passado, ciência e experiência possuíam campos autônomos e complementares de aplicação, e se apoiavam no pressuposto da existência de sujeitos distintos em que atuavam. Operando no espaço do sensível, do divino e do místico, e tendo como sujeito o 'senso comum', a experiência tradicional possuía como limite a morte, a descontinuidade. Já a ciência, ao impor a determinação de impressões sensíveis, faz que a autoridade do homem, para quem experiência e certeza são incompatíveis, seja irremediavelmente perdida. Para tanto a ciência, sobretudo a partir de Descartes, institui um novo sujeito, em cuja consciência são reunidos conhecimento e experiência — estes deixam de constituir um mistério, um fantasma, e de 'pathema' reduzem-se a 'mathema', 'algo que é sempre e já imediatamente conhecido em cada ato de conhecimento, o fundamento e o sujeito de todo pensamento'. A revisão crítica leva a identificar a construção transcendental de um sujeito definido, desde o 'ego cogito', como expressão, dado de enunciação, ente lingüístico.

Brilhante leitura de contradições da modernidade

Nos demais ensaios, a exploração de fissuras identificadas nas relações entre jogo e rito, diacronia e sincronia, significantes estáveis e significantes instáveis, continuidade e descontinuidade, entre o método de Adorno e o de Benjamin, entre outras, dá vazão a uma brilhante leitura de contradições da modernidade. Em Programa para uma revista, o jogo com a ambigüidade surge em consonância com a explicitação de uma preocupação central de Agamben. Defendendo a supressão da defasagem entre verdade ('a coisa a transmitir') e a transmissibilidade ('o ato de transmissão'), ele ali conclama filólogos (nome com que se refere às disciplinas das ciências humanas) e poetas para que se coloquem precisamente no lugar em que a fratura da linguagem tem mantido a polarização, estanque, entre poesia e filosofia. Neste espaço, infantil, divisa a possibilidade do nascimento de uma experiência consciente e problemática, em torno da qual possa ser construída uma 'nova e crítica mitologia', enfim uma produção de origem, de História.

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